Categoria: Economia

Uso econômico da exceção?

Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Member

Como se sabe, a ditadura civil-militar de 1964 foi um tipo de regime de exceção, um protótipo clássico de quartelada. Também, como se sabe, duas peças jurídicas de força excepcional foram postadas como procedimento legislativo: o AI-5 e a Lei de Segurança Nacional.

Essa LSN, de poderes excepcionais, estritamente vinculada ao esforço da Razão de Estado, é de inegável capacidade de exceção – até hoje. Com o advento da CF88, a LSN perdurou, o que em si se configura como arrasto da exceção aos dias atuais. Fato, evidentemente, incabível; e, ainda, se soma à conhecida Lei Antiterror (2016). O que poderia haver de mais negativo à CF88, neste curso? Além de tudo, o Executivo ainda interpõe junto ao STF uma suposta “utilização econômica da exceção1”.

Se já não fosse suficiente para se demonstrar os mais assustadores ataques à CF88à direita e à esquerda – vemos se avolumarem as declarações oficiais ou de seus emissários em tom (e desenhos bem delineados: “WP”) de apologia ao crime ou simplesmente conclamando neonazistas ao poder. Se lembrarmos bem da história de 2016 quando se reverenciou Ustra (coronel torturador) no Congresso Nacional –, a conclusão óbvia é de que: o ocorrido atualmente não é novidade. Nessa sessão, que culminou e chancelou o golpe de 2016 (mesmo com aval contrário da CGU), a subversão à democracia e ao Estado de Direito, ali, já estava pronta – com inegável defesa do desmantelamento do Processo Civilizatório.

As digitais de 2018-2021 estão em 2016 – as de 2016 remontam a 2013 – e, por fim, tudo pode ter sido embalado desde o Mensalão (2005) e sua coirmã Lava Jato (2014), deserdada pelo STF em 2021. Certamente, nenhum roteiro de ficção espantosa se equipara a isso: é digital demais, mesmo para um gênio como Asimov (2004) e seu Eu Robô. Esse é o tal “Mecanismo” que vem nos abatendo e, obviamente, não cabe na ideologia infanto-juvenil postada via Netflix.

O fogo na Amazônia e no Pantanal, “com a boiada passando”, a estapafúrdia logística dos aparelhos respiradores que não se encontram no Mapa, a inexistência de vacinas, os factoides de arrependimento do famoso mercado, a implosão da economia, os mais severos ataques aos trabalhadores e aos servidores públicos, bem como a incursão antieconômica dentro da maior empresa estatal brasileira (Petrobrás), tudo isso e mais um pouco, a exemplo do colapso dos hospitais públicos e privados, no Brasil todo, é mera consequência.

Não há coincidência alguma, nem espanto, nem Judas enganado, só há semelhanças com o Necrofascismo: um projeto político programado para a morte globalizada do povo. Algo mais amplo em táticas e estratégias do que a Ciência Política denominava de Democídio: extermínio de um povo.

O vocábulo Democídio resulta de uma combinação do sufixo latim cidium, derivado de caedére, “matar” e do prefixo grego demo, povo. Ao que se segue, pela lógica, à “morte por ação direta de um governo”.

Também se pode avaliar o democídio como um dos tipos de politicídio, mas não como sinônimo, visto que este último é mais amplo e reúne outras modalidades de abatimento político. Ainda mais porque, no politicídio, o uso da expressão é generalista e pode incluir sentidos bastante prosaicos, como “assassinato de uma carreira política”. […] Portanto, no caso de democídio, as matanças políticas são manifestamente assassinatos deliberados, planejados e realizados a partir de determinadas motivações político-ideológicas – ou seja, é evidente que o intuito de cometer a eliminação física é inerente ao ato político de extermínio de uma parcela do povo (MARTINEZ, 2014, online).

Em outro exemplo, a seletividade da Bomba de Nêutrons, e que não faz mal ao capital, porque não demole casas e equipamentos difíceis de serem repostos, poderia ser um guia a esse projeto atual do Fascismo Nacional.

Altamente demolidor e exímio na letalidade de negros, pobres, indígenas, idosos e de todos os que se atrevem a pensar um país livre do comando miliciano, o Necrofascismo, como se diz, será julgado pela história e pelo povo. Pelos sobreviventes ou náufragos que escaparam aos dissabores de um coronel ou capitão qualquer, esquecido e esclerosado, como diria Gabriel Garcia Márquez (2001).

No país da piada pronta, típica de Macunaíma e de João Grilo (LIMA, 2002), seguindo-se o general De Gaulle (“Esse país não é sério”), a “normalização da morbidez”, anunciando mais de 500 mil mortes – sem surtir efeito de indignação aos poderes e instituições, e nem junto ao povo –, esse genocídio, ainda nos revela que faltará a famosa cloroquina para os casos crônicos de malária. É difícil olhar para o poço de nossa cultura, mas é o que temos para hoje – quiçá, para mais 20 anos de espetáculo circense na política.

A esperança, nossa esperança, no entanto, estaria no sorriso debochado, nos lábios irônicos e cínicos de quem se viu atropelado pelo mesmo cinismo que outrora apoiou, como nos diz Octávio Ianni (1983):

Toda ditadura começa a ser destruída no momento em que o povo, operário, camponês, mineiro, empregado, funcionário, faz uma piada sobre o ditador […] A piada é uma fantasia popular […] O humor gera o riso e solapa a pretensa seriedade e eternidade da mais poderosa tirania […] O criado negro representa o Supremo com a mesma autenticidade, a ponto de este se reconhecer na paródia. Há uma carnavalização do tirano e da tirania […] A vaca passeia nos salões do palácio e pasta as suntuosas cortinas e os solenes tapetes (Ianni, 1983, p. 100).

Isso é o que planejamos ou, ao menos, esperamos ver em breve, como seguidores de uma metáfora que leve o jacaré de volta ao Pantanal – e assim retire esses animais da cidade, onde, de fato, são extremamente perigosos. O que, por fim, relata uma espécie de justiça revolucionária que retroalimenta o meio ambiente saudável, por natureza, e também politicamente.

Bibliografia

ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. Porto Alegre : L&PM, 1997.
             Eu Robô. Ediouro, 2004.
IANNI, Octavio. Revolução e cultura. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1983.
           Ensaios de sociologia da cultura. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1991.
           A ideia de Brasil moderno. 2ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1994.
LIMA, João Ferreira de. Proezas de João Grilo. Fortaleza-CE : Academia Brasileira de Cordel : Ban Gráfica, 2002.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Ninguém escreve ao Coronel. 18ª Ed. Rio de Janeiro : Record, 2001.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Democídio. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3890, 24 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26748. Acesso em: 4 abril 2021.