Categoria: Política

A LUTA POLÍTICA PELA SAÚDE PÚBLICA

Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Member

A primeira observação provém do profundo pesar e sentimento de solidariedade às vítimas que sofrem – direta ou indiretamente – os efeitos da pior crise política e caos institucional de nossa história, agravada pela, igualmente, pior e mais grave crise sanitária, humanitária, provocada pela pandemia COVID-19.

Assim, cabe-nos, preliminarmente, ressaltar que diante da gravidade da situação, com centenas de milhares de mortes (absolutamente evitáveis, em sua imensa maioria – mais ainda em 2021), que a formalidade ou a tecnicalidade (via de regra vazia de validade como sistema perito) foi suplantada, rapidamente, pela defesa intransigente da Ciência.

Afinal, entende-se, se o caminho é o da Prudência – como ensinavam os clássicos desde a Grécia e a Roma antigas –, que um debate, uma conversa, uma análise séria, efetivamente comprometidas com a Saúde Pública, no atual momento do nosso país, são merecedoras de muito mais do que uma simples digressão sobre conhecimento e Ciência.

Simplesmente porque o direito à vida de milhares e de milhões de brasileiras e de brasileiros não reside em absolutamente nenhuma tecnicalidade, mas sim, encontra respaldo e repouso na Ciência, no conhecimento crítico e no pensamento e na ação que se pautam pela Ética, pelo integral respeito aos direitos fundamentais.

Notadamente, como bem salientou o Supremo Tribunal Federal, em descrição típica de Aula Magna acerca dos direitos humanos, diante da saúde pública, do descalabro com que foi e vem sendo tratada pelo Executivo central (anímico e negacionista), é preciso respeitar a vida.

Em sessão do dia 8.4.2021 (ADPF 811), por incrível que pareça, o STF precisou decidir da ilegalidade das aglomerações em cultos e missas: como que dizendo-se sobre um Deus onisciente, para os crentes, que a sabedoria está na racionalidade, ou seja, na Ciência e na medicina que provê a Saúde Pública. Tratou-se da ADPF 811: basicamente,
a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental versa sobre a garantia de direito e de proteção contra decisões inconstitucionais.

Se há alguém aqui que possa discordar do que foi dito, sobretudo se efetivamente estiver vinculado a um Programa de Pós-Graduação em “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, recomenda-se fortemente recuperar uma reflexão que formulamos na disciplina CTS 001: obrigatória, introdutória, mormente basilar, e, muito precisamente, denominada “Ciência Tecnologia e Sociedade”.

E qual é esta reflexão?

É simples: Não há Ciência sem prospecção, investigação, análise e reflexão
crítica.

Sem isso, repetem-se apenas os mesmos formulários burocráticos que nos apontam, invariavelmente, os mesmos resultados e as mesmas (in)conclusões. Ou seja, sem capacidade de olhar a “contrapelo”, que busque a raiz dos fatos e dos problemas, pelo viés do que se esconde ou se move pelas sombras (e a realidade nacional é exímia em “sombras”), escondidas, camufladas no pensamento e nas ações, (ações ou relações, individuais ou coletivas, como queria Max Weber), sem isso, não há construção lógica e validável (eticamente) do conhecimento.

Sem isso, o que se apresenta é o famoso acolchoado da inconsciência, da Ideologia – a pior pasmaceira e a mais nefasta inimiga da Ciência e de todos nós.

Agora, com profundo agravamento, ainda bem servida de Fake News, negacionismo, sonhos com Papai Noel e indescritível reprovação à vida humana – estando essa mergulhada em caos e submissão voluntária (diria La Boetie) aos interesses mercadológicos ou subtraída pelos mais nefastos e pavorosos interesses de um capitalismo, tipicamente brasileiro, aninhado entre o “pensamento” escravista e o seu ávido feitor de escravos – há muitas sobras para o Capitão do Mato.

Em suma, sem uma história muito bem contada, que remova as tais sombras – em claríssima aplicação do “método do meio-dia”, como queria Ortega Y Gasset – sequer teremos algum “sombreamento” acerca do que é Ética, Ciência e capacidade humana (forçosamente capazes) de promover e de prover o Processo Civilizatório.

Por fim, é necessário dizer que esta análise não é retórica, nem metafórica ou hiperbólica. Pois, os argumentos aqui reunidos pertencem ao mais simples nível do chamado realismo político e societal, sem invenção ou “intervenção” de qualquer natureza, sem nenhuma relevante descoberta.

É apenas um discurso sobre a Ciência que deve nos mover, mas sem a pretensão de, nesse momento, “Fazer-se Ciência”. Mas é, sim, um recado ou alerta aos negacionistas: num Programa de Pós-Graduação afinado com “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, por óbvio, a Ideologia e a negação da realidade não são bem vindas.

Como se diz, se houvesse leitura atenta da Ideologia Alemã, a ideologia fascista não seria vencedora em pleno século XXI.

Aqui, pode-se dizer, cuida-se da “negação da negação”, e que, obviamente, é uma afirmação; a afirmação de que a vida de milhões de brasileiros e de brasileiras, especialmente pobres e negros, dependem exclusivamente da saúde pública e de seus instrumentos e aportes, começando pelo Sistema Único de Saúde – o nosso SUS.

Nosso SUS, do povo, não das elites ou de seus representantes ideológicos. Nesse item, finalizando com Gramsci, diríamos que almejamos formar o Intelectual Orgânico: sábio, na forma do Homem Médio em sua Vida Comum, preenchido de condição humanitária e transformador da realidade que nos abateu feito genocídio.

E o que é Ciência? Diria Bourdieu: é a luta armada.

Cada um(a) entende como quer, mas entendemos como luta armada de sonhos e de esperanças, de fé na coisa pública, em luta acesa e armada contra a desilusão, o atavismo, a ignorância programada e replicada, o obscurantismo negador do próprio Renascimento: essa areia movediça da anti-ciência.

Entendemos que é uma luta armada em defesa da Constituição Federal de 1988, em defesa da democracia, da República, do Estado de Direito. Lutamos pela sanidade, pela saúde pública das próprias instituições, pela dignidade humana e pela mínima capacidade cognitiva aplicada aos negócios públicos.

Sumariamente, entendemos como luta armada pelo “Direito a ter direitos” e legitimamente municiada contra toda e qualquer forma de obstrução prévia do conhecimento crítico, libertário, inclusivo e emancipador. Nos caberia, com folgas, a Educação após Auschwitz – de Adorno.

E, aqui, todos sabem que se fala da luta antifascista que orbita O Labirinto do Fauno, por onde anda o Alienista, os “bestializados” que ainda hoje promovem uma Revolta da Vacina, em 2021, e os macunaímas que teimam em negar o Abaporu – repleto de Vidas Secas.

A ninguém é atribuída a obrigação de concordar com tudo, mas a ninguém é dado o direito de alegar ignorância em face das restrições impostas a um suposto “direito de ir e vir”, pois há que se ficar, permanecer e respeitar o isolamento social.

A ninguém é dado o direito de negar a Ciência, como se recebesse uma carta em branco que viesse a se alimentar e servir-se como remédio antijurídico do próprio direito à vida e que, assim, ainda abastecesse essa gigantesca farmácia que pulula no WhatsApp – e seus fármacos envenenados de mentiras e de ódio social, já derrotando largamente o
famoso Dr. Google.

O capitalismo brasileiro, redescobrindo a cultura do “homem das cavernas”, investe contra Prometeu – o Patrono do Conhecimento e leva a crer que a morte é mais lucrativa do que a vida; por isso, investe-se em armas e não em vacinas. Por isso também não há “impedimento”, porque há muito mercado para a morte programada, planejada.
Essa é a experiência renitente do “nosso” Necrofascismo.

O Brasil, em 2021, vive (sobrevive) entre Pinochet e Thatcher – sempre soubemos combinar, perfeitamente, capitalismo e escravidão. Por isso, também, levaremos algum tempo para superar a negação da inteligência ou, ao inverso da negação, para a afirmação da cognição saudável.

Antigamente, ainda como modelo ideal, tratávamos de uma “inteligência política”; porém, no país atual, efetivamente, combater as iniquidades, e afirmar a inteligência meridiana, não é uma missão para amadores. Portanto, nosso convite sempre será para que se avalie Ciência, Tecnologia e Sociedade em total consideração à
democracia, aos direitos fundamentais, à dignidade humana.

A vida, se há saúde e inteligência na condução das instituições públicas, em contraste, exige a superação da Idiocracia que se mantém com as provocações do Democida instalado no poder. Por isso, não quero os Versos Tristes, de Neruda. Nós queremos saúde pública.

Referências


ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1995.
DEL TORO, Guillermo & FUNKE, Cornelia. O Labirinto do Fauno. Rio de Janeiro : Intrínseca, 2019.
GRACILIANO RAMOS. Vidas Secas. 91ª ed. Rio De Janeiro : Record, 2003.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). V. 2. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

(ps: Abertura da Aula Magna, como coordenador do PPGCTS/UFSCar, em 12.04.2021

Constitutional Carnivalization: Government disregards and de-bureaucratizes the Constitution

Amid the 2019 carnival, the federal government had reduced the participation of civil society in the deliberative spheres of power, and thus, entered (through the back door) in a classic phenomenon of Political Anthropology: the Carnivalization of Politics (DAMATTA, 1983) or, as we call it here, the cannibalization of CF88.

In summary, the various executive ministries installed in 2018 emptied councils, commissions, committees, and other forms of collegiate management. In practice, with immediate effect, it means that the Public Power once again failed (and has been destroying) the Federal Constitution of 1988 and, thus, continues to act against the law – since 2019, it is worth mentioning. Certainly, what is preserved by the Constitution is achieved, concerning the restriction to the removal of civil society from public affairs. The Political Charter says the opposite because it instigates inclusion, participation, social control, political pluralism, and emancipation.

The Constitution guarantees as a duty or “public obligation to do” the deepening of the forms of participatory democracy and management through popular representation, notoriously, as the power of the decision of the main social policies. The data speaks for itself: there were about 40 Councils, some consultative and others normative, like the National Environment Council. Although the majority of councils were created in the 1990s – shortly after the promulgation of the Constitution – the Health Council, for example, dates from 1930. The same public health that, by direct and premeditated action of Necrofascism, in the way of facing the 2020 pandemic, received the seal of “devastating” by the UN (United Nations) – a fact, undoubtedly, that is directed as a genocidal deliberation and that reminds the Füher in the last days of the Reich – when condemning the people German to total extermination, for being “weak”.

Following the same political symptom, in 2020, we were labeled (and condemned) as an “environmental outcast”. With these nicknames, what will we say to future generations – starting from the present tax – when we have to say that the agent was urged to the International Criminal Court, for proclaiming himself as the instigator of genocide?

The episode of the National Committee for the Prevention and Combat of Torture is even more symptomatic: its members were elected, but they did not even take office. Prison monitoring and delivery of reports on psychiatric hospitals have already been affected, as well as the definition of public policies aimed at the elderly, disabled, and indigenous people.

The National Council for Indigenous Policy and the Amnesty Committee were not even listed by the government. The National Council for Solidarity Economy has been wiped out, thinner, reduced to tripartite representation, in which government, workers, and employers now have the same number of members – as if the action of capital on labor incurred isonomy of forces.

Another one that suffers restrictions is the National Council of Workers in Family Agriculture, observing the ineffectiveness of Condraf (National Council for Sustainable Rural Development) and Cnapo (National Commission for Agroecology and Organic Production). The National Council for Food and Nutritional Security (Consea) was abolished.

Therefore, there is a serious emptying of the participation channels of the people and their professional and technical representations and, as a result, it is easily concluded that the more averse to the democratic norm, the more indifferent, distant, and anti-popular, is the Public Power. Another assessment, as clear as possible, is that, possibly, political measures and actions of the displeasure of the people are more easily taken – by removing the “obstacle” of participation and social control.

It should be noted, specifically, the areas where the dismantled councils were most affected, are, notoriously, related to the Ministries of Citizenship, Agriculture, Human Rights, Women, and Family. Many other conjectures can be made and, although lessons from factual data are relevant, we will bring just a few examples: in agriculture, members of civil society may / should be against the use of pesticides, exactly those prohibited by the main health regulatory agencies in Brazil and internationally.

Whoever has the least constitutional intelligence (socially and morally adept at the Civilizing Process) knows that, when an international inquiry is received at the Human Rights Council (UN), ethical and human defeat already accompanies the proposition and, therefore, not the condemnation – it is also known that “absolution” does not bring redemption from guilt or deceit. It is worth noting that the same accusation applies to “systemic racism” that makes Racialfascism rules; in addition to the fact that we kill prisoners and hunger victims.

It has become routine to observe the moral cancellations coming from international institutions, on several subjects, including “ordinances on abortion” (typical janitorial or porter rules) that hurt any republican basis or principle. There are also serious condemnations of human rights violators, in the name of some unbalanced faith, and severely punished by the Supreme Court: note that in this case there is medieval torture, in the name of some alleged nefarious deity.

When ministries and institutions are charged by the UN (Committee for the Elimination of Discrimination against Women), notably, on the urgency of complying with the legality of public acts and declarations, it is because National Fascism has dug a very deep civilizing gap. Another example of this is the accusation in the multilateral organization that the Government does not recognize – and, therefore, does not act against – structural racism.

This is just a residual summary of the current situation of Necrofascism in the country, invoking Nero to watch over the Amazon and the Pantanal – besides the fact that, within the Empire, even women of power are encouraged, religiously, to be submissive to macho interests.

The worst, however, is to watch the country internationally deny human rights. Internally, ministers of state action “secretly” to violate the law and court decisions.

In this sense, the probability is much greater that hunger is a chronic sensation among women, blacks, and browns – that is, the vast majority of the population will be able to know the state of misery, chronic hunger, due to the neoliberalism applied in the course of the pandemic. . We can and must consider and accentuate many of the historical problems of the National State – from the pristine eras of the formation of the Nation-State – but are we a nation? Isn’t the Patriarchal State the result of Casa Grande and the denial of citizenship? Isn’t bachelorhood still a disguise to racism and segregating elitism, founder of public places like Paraisópolis and Higienópolis? Whose paradise, who’s cleaning – and not what …?

Hasn’t political parochialism ever wiped out any project for professionalizing the state? Doesn’t all this stem from the atavistic colonial combination between Capitalism and slave labor? All of this, now, have no effects exacerbated by the sociopathy of financial capital and incorporated by genocidal state practices?

Finally, it is worth mentioning that we are dealing here – evidently – with some intricacies of the state structures of National Fascism, especially in 2020. There is no doubt that public institutions are articulated around a fascist State project.

More on

BRANCO, Guilherme Castelo (Org.). Terrorismo de Estado. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

CALDAS, Álvaro. Um abominável legado de tortura. Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno Aliás, p. J5, 02 set. 2007.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1983.

DO SENTIDO DA CARTA POLÍTICA

Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Membe

Ser ou não ser? Essa dubiedade, incerteza, alienação, é parte da vida social da Humanidade: é Fascismo ou não? É ditadura ou não? Trata-se de graves ou de gravíssimas violações dos direitos fundamentais, com negação da vida social e da dignidade (ou não)?

Sob a Política, a Polis, o “fazer-se política”, porém, a lei deve ser assertiva para minimizar essa exposição. Por exemplo, a CF88, enquanto mapa teleológico, deve ser um guia, uma bússola moral, para que o cipoal seja retirado da frente das políticas públicas.

            A prevalecer a CF88, o Poder Público deve estar em equilíbrio institucional, mas não em pódio centrista, pendendo ou podendo cair do muro em qualquer dos lados que arregimente mais poder ou quedar-se sob júdice da “lei do mais forte” (MÉSZÁROS, 2015). Neste momento, em 2020, nós tendemos à barbárie fascista, com enorme constrição de direitos e de garantias fundamentais.

            Por sua vez, ao contrário disso, a CF88 é expressa a fim de que Hamlet (SHAKESPEARE, 2004) não nos coloque como o “não-ser”. Essa opção não é válida à vida humana e social. Sob o art. 225 da CF88, a Amazônia, o Pantanal e os manguezais (também os Pampas, o Cerrado, a Caatinga) devem ser prioridade – para que “sendo”, também possamos ser.

  • Como patrimônio nacional – natural, social, cultural (art. 225, § 4º, da CF88) – a preservação do meio ambiente nos inclina diretamente ao Processo Civilizatório (art. 225, caput).
  • Assim, a teleologia é esta bússola moral que nos preserva enquanto vida social, garantindo-se que o presente e o futuro das próximas gerações seja uma realidade e não uma evidência.
  • O meio efetivo, o mecanismo político-jurídico, de Segurança Constitucional ao Processo Civilizatório também está inscrito na Carta Política de 1988: trata-se da integridade do patrimônio genético e a ativação do Princípio da Diversidade (225, II).
  • Quando isto não ocorre, como diz Hamlet, é porque há algo de muito podre no Reino da Dinamarca, e mais ainda no Brasil de 2016-2020.
  • Enfim, concluindo-se parcialmente esse aspecto, pode-se dizer que precisamos expandir o direito à consciência que nos permita entender que toda Constituição tem uma unidade política; todavia, como Carta Política, na CF88 prefigura-se uma utilidade política, notadamente, para que nenhuma cidadã, nenhum cidadão, pergunte-se se é ou não.

O que fazemos ao buscar orientação para uma Ciência da CF88 não deixa de ser a aplicação de uma técnica ao próprio Texto Constitucional. Porém, tanto esta forma de abordar, inquirir, a CF88, quanto o próprio Objeto Positivo da CF88 – Princípio da Inclusão dos Direitos da Cidadania – são manifestações culturais. Não são técnicas ou ciências positivistas no sentido específico de obtenção de neutralidade ou equidistância do conhecimento. Pelo contrário, trata-se de conhecimento técnico, político-jurídico, a serviço da militância em favor dos direitos de cidadania (BORJA, 1998).

Do mesmo modo, sob o alcance do Objeto Positivo da CF88 (pluralismo, mutualismo e multiculturalismo[1]), a técnica e a ciência aplicadas à CF88 são de natureza político-jurídica, e isto quer dizer que se autorreferenciam como inclusão e manifestação cultural do Conteúdo Constitucional (BORJA, 1998). De tal sorte que, à frente do realismo político, deve-se diferenciar os direitos políticos quando se observa a análise do cientista político e do jurista – propriamente dito (BORJA, 1998).

No que se refere ao Processo Civilizatório em destaque na CF88 – desde o art. 4º, IX e 215, § 1º – já fica sobrestado também que deve-se receber auxílio, nesta inicial Ciência da CF88, da Filosofia (ou Filosofia Constitucional), da Sociologia, da Antropologia Política, da Ciência Política (BORJA, 1998), notadamente quando se referenciam os povos da floresta e as populações marginalizadas pelo próprio Estado de Direito, uma vez que, notadamente pobres e negros, só reconhecem o poder do giroflex. 

Desse modo, reforçamos as diretrizes da CF88 e o emprego de uma metodologia constitucional que devemos fixar nessa leitura da Ciência da Carta Política de 1988. Neste sentido, entendemos que a Ciência da CF88 é mais devedora das Ciências Sociais, da(s) Teoria(s) do Estado e da Filosofia Constitucional do que, propriamente, de uma nomologia positivista – ainda que seja essencial enquanto conhecimento técnico a contribuir com a Luta pelo Direito. Uma leitura apurada dos direitos fundamentais individuais e sociais revela que a CF88 é inclusiva, emancipatória, cultural e expansiva.

[1] “A Constituição enuncia também alguns direitos de solidariedade. Estes são projeções recentemente identificadas dos direitos fundamentais. Deles estão na Lei Magna o direito ao meio ambiente (art. 225) e o direito da comunicação social (art. 220). Esses direitos são difusos, na medida que não têm como titular pessoa singularizada, mas “todos” individualmente. São direitos pertencentes a uma coletividade enquanto tal” (FERREIRA FILHO, 2009, p. 310).

A Ciência da CF88 traz as marcas do Constitucionalismo Moderno – Estado de Direito Democrático de 3ª Geração (por exemplo, com a internacionalização do direito à soberania: um tipo de internacionalização da liberdade negativa) – e, no caso em tela, da Ciência Política (ou mais precisamente da Teoria Política) e da Filosofia Constitucional, da própria Ética Constitucional, da Antropologia Política (fortemente cultural) e de outros substratos e constituições – por analogia, comparação, dedução. Esta forma de metodologia angaria-se da História, sobretudo da História Constitucional, e da indução, sobremaneira quando pensamos que referências apostas aos arts. 4º, IX e 215, § 1º, são mais do que divisores de valores; antes de tudo, são indutores de padrões civilizatórios que devem guiar (constitucionalmente) a sociedade, os indivíduos e o Poder Político.

Além disso, a pergunta que devemos fazer, continuamente, refere-se às relações entre o Estado – o Poder Político, a organização por excelência –, e a sociedade: a formação social brasileira. O problema está na definição de Estado Democrático de Direito, como consta na CF88, ou se dirige a indagação/preocupação extrema com o realismo político que afronta continuamente essa mesma referência da Carta Política? O problema é constitucional, nomológico, ou ético, no sentido de que os princípios jurídicos, constitucionais – que são éticos –, acabam sucumbindo à realidade nacional permeada pelos interesses do capital especulativo, mas também recheada de pequenos poderes e de pequenos favores?

Se isto não ocorre, como se sabe, o problema não é constitucional, mas sim da condição social e do realismo político enfrentado no país, mormente, sob os ganchos do Fascismo Nacional ou Necrofascismo (MARTINEZ, 2020) ao promover a negação absoluta do Estado Ambiental (CANOTILHO, 1999) vislumbrado na CF88.

Assim, afirma-se uma abordagem da Carta Política de 1988 que repudia todo sentido autoritário, a exemplo daqueles que defendem o art. 142[2] como afirmação de um suposto “poder moderador” a dar base a uma Constituição Cesarista. Pela imposição do Princípio da Unicidade Constitucional[3] e pela interposição do Princípio do não-Retrocesso Social, esse tipo de hermenêutica é ridicularizado.

[2] “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifo nosso, in verbis).

[3] “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (in verbis).

 Ao contrário disso, a Ciência da CF88 deve perceber, ressaltar que se trata de uma Constituição Antifascista, anticesarista, e isto ainda revela muito do que seja a própria Ciência da CF88 – como Carta Política decisiva à socialização e ao humanismo. É obvio, portanto, apregoarmos que o Processo Civilizatório só se faz presente com garantias efetivas às gerações futuras (art. 225) e mediante a compreensão de que a Ciência da CF88 enfatiza o patrimônio cultural, ambiental, institucional, social.

Por outro lado, há uma relação intrínseca entre a Política, a Polis (e o realismo político), com toda Constituição, e com a CF88 não seria diferente: pelo simples fato de toda Constituição ser política, no sentido de expressar as relações de poder e de dominância predominantes em determinado contexto – especialmente quando da fluência do Poder Constituinte. Por mais técnica ou histórica que se apresente, toda Constituição institui direitos, instrui deveres, delimita o Estado e o poder; contudo, trata-se de um processo em concomitância, pois o próprio Poder Constituinte é o resultado do entrechoque de outros poderes constituídos socialmente e, deste embate, toda Constituição apresenta-se compromissória.

A CF88 é compromissória, sem que seja uma exclusividade, portanto. Da forma de governo, a estruturação do Poder Político, a relação entre direitos, deveres, garantias e liberdades, o arranjo entre os três poderes, os mecanismos de freios e contrapesos, a regularidade de eleições, o pluralismo político (ou não) e a emissão de moedas, tudo é representativo dos compromissos assumidos na ocorrência do Poder Constituinte – e depois, sob o Poder Constituinte Derivado e controlador do processo jurídico. Aliás, tudo será compromisso político, inclusive se a Constituição é outorgada ou promulgada; para este último caso, há que se observar algumas entrâncias do Princípio Democrático – e que, em tese, é a guia do Processo Civilizatório postado na Carta Política de 1988.

Referências

BORJA, Rodrigo. Enciclopedia de la Politica. (2ª ed.). México : Fondo de Cultura Económica, 1998. 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

MÉSZÁROS, István. A Montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. São Paulo : Boitempo, 2015.

SHAKESPEARE, W. Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução de Ana Amélia de Queiroz Carneiro Mendonça. In: BLOOM, H. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p.140-319.