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DO SENTIDO DA CARTA POLÍTICA

Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Membe

Ser ou não ser? Essa dubiedade, incerteza, alienação, é parte da vida social da Humanidade: é Fascismo ou não? É ditadura ou não? Trata-se de graves ou de gravíssimas violações dos direitos fundamentais, com negação da vida social e da dignidade (ou não)?

Sob a Política, a Polis, o “fazer-se política”, porém, a lei deve ser assertiva para minimizar essa exposição. Por exemplo, a CF88, enquanto mapa teleológico, deve ser um guia, uma bússola moral, para que o cipoal seja retirado da frente das políticas públicas.

            A prevalecer a CF88, o Poder Público deve estar em equilíbrio institucional, mas não em pódio centrista, pendendo ou podendo cair do muro em qualquer dos lados que arregimente mais poder ou quedar-se sob júdice da “lei do mais forte” (MÉSZÁROS, 2015). Neste momento, em 2020, nós tendemos à barbárie fascista, com enorme constrição de direitos e de garantias fundamentais.

            Por sua vez, ao contrário disso, a CF88 é expressa a fim de que Hamlet (SHAKESPEARE, 2004) não nos coloque como o “não-ser”. Essa opção não é válida à vida humana e social. Sob o art. 225 da CF88, a Amazônia, o Pantanal e os manguezais (também os Pampas, o Cerrado, a Caatinga) devem ser prioridade – para que “sendo”, também possamos ser.

  • Como patrimônio nacional – natural, social, cultural (art. 225, § 4º, da CF88) – a preservação do meio ambiente nos inclina diretamente ao Processo Civilizatório (art. 225, caput).
  • Assim, a teleologia é esta bússola moral que nos preserva enquanto vida social, garantindo-se que o presente e o futuro das próximas gerações seja uma realidade e não uma evidência.
  • O meio efetivo, o mecanismo político-jurídico, de Segurança Constitucional ao Processo Civilizatório também está inscrito na Carta Política de 1988: trata-se da integridade do patrimônio genético e a ativação do Princípio da Diversidade (225, II).
  • Quando isto não ocorre, como diz Hamlet, é porque há algo de muito podre no Reino da Dinamarca, e mais ainda no Brasil de 2016-2020.
  • Enfim, concluindo-se parcialmente esse aspecto, pode-se dizer que precisamos expandir o direito à consciência que nos permita entender que toda Constituição tem uma unidade política; todavia, como Carta Política, na CF88 prefigura-se uma utilidade política, notadamente, para que nenhuma cidadã, nenhum cidadão, pergunte-se se é ou não.

O que fazemos ao buscar orientação para uma Ciência da CF88 não deixa de ser a aplicação de uma técnica ao próprio Texto Constitucional. Porém, tanto esta forma de abordar, inquirir, a CF88, quanto o próprio Objeto Positivo da CF88 – Princípio da Inclusão dos Direitos da Cidadania – são manifestações culturais. Não são técnicas ou ciências positivistas no sentido específico de obtenção de neutralidade ou equidistância do conhecimento. Pelo contrário, trata-se de conhecimento técnico, político-jurídico, a serviço da militância em favor dos direitos de cidadania (BORJA, 1998).

Do mesmo modo, sob o alcance do Objeto Positivo da CF88 (pluralismo, mutualismo e multiculturalismo[1]), a técnica e a ciência aplicadas à CF88 são de natureza político-jurídica, e isto quer dizer que se autorreferenciam como inclusão e manifestação cultural do Conteúdo Constitucional (BORJA, 1998). De tal sorte que, à frente do realismo político, deve-se diferenciar os direitos políticos quando se observa a análise do cientista político e do jurista – propriamente dito (BORJA, 1998).

No que se refere ao Processo Civilizatório em destaque na CF88 – desde o art. 4º, IX e 215, § 1º – já fica sobrestado também que deve-se receber auxílio, nesta inicial Ciência da CF88, da Filosofia (ou Filosofia Constitucional), da Sociologia, da Antropologia Política, da Ciência Política (BORJA, 1998), notadamente quando se referenciam os povos da floresta e as populações marginalizadas pelo próprio Estado de Direito, uma vez que, notadamente pobres e negros, só reconhecem o poder do giroflex. 

Desse modo, reforçamos as diretrizes da CF88 e o emprego de uma metodologia constitucional que devemos fixar nessa leitura da Ciência da Carta Política de 1988. Neste sentido, entendemos que a Ciência da CF88 é mais devedora das Ciências Sociais, da(s) Teoria(s) do Estado e da Filosofia Constitucional do que, propriamente, de uma nomologia positivista – ainda que seja essencial enquanto conhecimento técnico a contribuir com a Luta pelo Direito. Uma leitura apurada dos direitos fundamentais individuais e sociais revela que a CF88 é inclusiva, emancipatória, cultural e expansiva.

[1] “A Constituição enuncia também alguns direitos de solidariedade. Estes são projeções recentemente identificadas dos direitos fundamentais. Deles estão na Lei Magna o direito ao meio ambiente (art. 225) e o direito da comunicação social (art. 220). Esses direitos são difusos, na medida que não têm como titular pessoa singularizada, mas “todos” individualmente. São direitos pertencentes a uma coletividade enquanto tal” (FERREIRA FILHO, 2009, p. 310).

A Ciência da CF88 traz as marcas do Constitucionalismo Moderno – Estado de Direito Democrático de 3ª Geração (por exemplo, com a internacionalização do direito à soberania: um tipo de internacionalização da liberdade negativa) – e, no caso em tela, da Ciência Política (ou mais precisamente da Teoria Política) e da Filosofia Constitucional, da própria Ética Constitucional, da Antropologia Política (fortemente cultural) e de outros substratos e constituições – por analogia, comparação, dedução. Esta forma de metodologia angaria-se da História, sobretudo da História Constitucional, e da indução, sobremaneira quando pensamos que referências apostas aos arts. 4º, IX e 215, § 1º, são mais do que divisores de valores; antes de tudo, são indutores de padrões civilizatórios que devem guiar (constitucionalmente) a sociedade, os indivíduos e o Poder Político.

Além disso, a pergunta que devemos fazer, continuamente, refere-se às relações entre o Estado – o Poder Político, a organização por excelência –, e a sociedade: a formação social brasileira. O problema está na definição de Estado Democrático de Direito, como consta na CF88, ou se dirige a indagação/preocupação extrema com o realismo político que afronta continuamente essa mesma referência da Carta Política? O problema é constitucional, nomológico, ou ético, no sentido de que os princípios jurídicos, constitucionais – que são éticos –, acabam sucumbindo à realidade nacional permeada pelos interesses do capital especulativo, mas também recheada de pequenos poderes e de pequenos favores?

Se isto não ocorre, como se sabe, o problema não é constitucional, mas sim da condição social e do realismo político enfrentado no país, mormente, sob os ganchos do Fascismo Nacional ou Necrofascismo (MARTINEZ, 2020) ao promover a negação absoluta do Estado Ambiental (CANOTILHO, 1999) vislumbrado na CF88.

Assim, afirma-se uma abordagem da Carta Política de 1988 que repudia todo sentido autoritário, a exemplo daqueles que defendem o art. 142[2] como afirmação de um suposto “poder moderador” a dar base a uma Constituição Cesarista. Pela imposição do Princípio da Unicidade Constitucional[3] e pela interposição do Princípio do não-Retrocesso Social, esse tipo de hermenêutica é ridicularizado.

[2] “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifo nosso, in verbis).

[3] “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (in verbis).

 Ao contrário disso, a Ciência da CF88 deve perceber, ressaltar que se trata de uma Constituição Antifascista, anticesarista, e isto ainda revela muito do que seja a própria Ciência da CF88 – como Carta Política decisiva à socialização e ao humanismo. É obvio, portanto, apregoarmos que o Processo Civilizatório só se faz presente com garantias efetivas às gerações futuras (art. 225) e mediante a compreensão de que a Ciência da CF88 enfatiza o patrimônio cultural, ambiental, institucional, social.

Por outro lado, há uma relação intrínseca entre a Política, a Polis (e o realismo político), com toda Constituição, e com a CF88 não seria diferente: pelo simples fato de toda Constituição ser política, no sentido de expressar as relações de poder e de dominância predominantes em determinado contexto – especialmente quando da fluência do Poder Constituinte. Por mais técnica ou histórica que se apresente, toda Constituição institui direitos, instrui deveres, delimita o Estado e o poder; contudo, trata-se de um processo em concomitância, pois o próprio Poder Constituinte é o resultado do entrechoque de outros poderes constituídos socialmente e, deste embate, toda Constituição apresenta-se compromissória.

A CF88 é compromissória, sem que seja uma exclusividade, portanto. Da forma de governo, a estruturação do Poder Político, a relação entre direitos, deveres, garantias e liberdades, o arranjo entre os três poderes, os mecanismos de freios e contrapesos, a regularidade de eleições, o pluralismo político (ou não) e a emissão de moedas, tudo é representativo dos compromissos assumidos na ocorrência do Poder Constituinte – e depois, sob o Poder Constituinte Derivado e controlador do processo jurídico. Aliás, tudo será compromisso político, inclusive se a Constituição é outorgada ou promulgada; para este último caso, há que se observar algumas entrâncias do Princípio Democrático – e que, em tese, é a guia do Processo Civilizatório postado na Carta Política de 1988.

Referências

BORJA, Rodrigo. Enciclopedia de la Politica. (2ª ed.). México : Fondo de Cultura Económica, 1998. 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

MÉSZÁROS, István. A Montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. São Paulo : Boitempo, 2015.

SHAKESPEARE, W. Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução de Ana Amélia de Queiroz Carneiro Mendonça. In: BLOOM, H. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p.140-319.