Tag: SUS

A LUTA POLÍTICA PELA SAÚDE PÚBLICA

Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Member

A primeira observação provém do profundo pesar e sentimento de solidariedade às vítimas que sofrem – direta ou indiretamente – os efeitos da pior crise política e caos institucional de nossa história, agravada pela, igualmente, pior e mais grave crise sanitária, humanitária, provocada pela pandemia COVID-19.

Assim, cabe-nos, preliminarmente, ressaltar que diante da gravidade da situação, com centenas de milhares de mortes (absolutamente evitáveis, em sua imensa maioria – mais ainda em 2021), que a formalidade ou a tecnicalidade (via de regra vazia de validade como sistema perito) foi suplantada, rapidamente, pela defesa intransigente da Ciência.

Afinal, entende-se, se o caminho é o da Prudência – como ensinavam os clássicos desde a Grécia e a Roma antigas –, que um debate, uma conversa, uma análise séria, efetivamente comprometidas com a Saúde Pública, no atual momento do nosso país, são merecedoras de muito mais do que uma simples digressão sobre conhecimento e Ciência.

Simplesmente porque o direito à vida de milhares e de milhões de brasileiras e de brasileiros não reside em absolutamente nenhuma tecnicalidade, mas sim, encontra respaldo e repouso na Ciência, no conhecimento crítico e no pensamento e na ação que se pautam pela Ética, pelo integral respeito aos direitos fundamentais.

Notadamente, como bem salientou o Supremo Tribunal Federal, em descrição típica de Aula Magna acerca dos direitos humanos, diante da saúde pública, do descalabro com que foi e vem sendo tratada pelo Executivo central (anímico e negacionista), é preciso respeitar a vida.

Em sessão do dia 8.4.2021 (ADPF 811), por incrível que pareça, o STF precisou decidir da ilegalidade das aglomerações em cultos e missas: como que dizendo-se sobre um Deus onisciente, para os crentes, que a sabedoria está na racionalidade, ou seja, na Ciência e na medicina que provê a Saúde Pública. Tratou-se da ADPF 811: basicamente,
a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental versa sobre a garantia de direito e de proteção contra decisões inconstitucionais.

Se há alguém aqui que possa discordar do que foi dito, sobretudo se efetivamente estiver vinculado a um Programa de Pós-Graduação em “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, recomenda-se fortemente recuperar uma reflexão que formulamos na disciplina CTS 001: obrigatória, introdutória, mormente basilar, e, muito precisamente, denominada “Ciência Tecnologia e Sociedade”.

E qual é esta reflexão?

É simples: Não há Ciência sem prospecção, investigação, análise e reflexão
crítica.

Sem isso, repetem-se apenas os mesmos formulários burocráticos que nos apontam, invariavelmente, os mesmos resultados e as mesmas (in)conclusões. Ou seja, sem capacidade de olhar a “contrapelo”, que busque a raiz dos fatos e dos problemas, pelo viés do que se esconde ou se move pelas sombras (e a realidade nacional é exímia em “sombras”), escondidas, camufladas no pensamento e nas ações, (ações ou relações, individuais ou coletivas, como queria Max Weber), sem isso, não há construção lógica e validável (eticamente) do conhecimento.

Sem isso, o que se apresenta é o famoso acolchoado da inconsciência, da Ideologia – a pior pasmaceira e a mais nefasta inimiga da Ciência e de todos nós.

Agora, com profundo agravamento, ainda bem servida de Fake News, negacionismo, sonhos com Papai Noel e indescritível reprovação à vida humana – estando essa mergulhada em caos e submissão voluntária (diria La Boetie) aos interesses mercadológicos ou subtraída pelos mais nefastos e pavorosos interesses de um capitalismo, tipicamente brasileiro, aninhado entre o “pensamento” escravista e o seu ávido feitor de escravos – há muitas sobras para o Capitão do Mato.

Em suma, sem uma história muito bem contada, que remova as tais sombras – em claríssima aplicação do “método do meio-dia”, como queria Ortega Y Gasset – sequer teremos algum “sombreamento” acerca do que é Ética, Ciência e capacidade humana (forçosamente capazes) de promover e de prover o Processo Civilizatório.

Por fim, é necessário dizer que esta análise não é retórica, nem metafórica ou hiperbólica. Pois, os argumentos aqui reunidos pertencem ao mais simples nível do chamado realismo político e societal, sem invenção ou “intervenção” de qualquer natureza, sem nenhuma relevante descoberta.

É apenas um discurso sobre a Ciência que deve nos mover, mas sem a pretensão de, nesse momento, “Fazer-se Ciência”. Mas é, sim, um recado ou alerta aos negacionistas: num Programa de Pós-Graduação afinado com “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, por óbvio, a Ideologia e a negação da realidade não são bem vindas.

Como se diz, se houvesse leitura atenta da Ideologia Alemã, a ideologia fascista não seria vencedora em pleno século XXI.

Aqui, pode-se dizer, cuida-se da “negação da negação”, e que, obviamente, é uma afirmação; a afirmação de que a vida de milhões de brasileiros e de brasileiras, especialmente pobres e negros, dependem exclusivamente da saúde pública e de seus instrumentos e aportes, começando pelo Sistema Único de Saúde – o nosso SUS.

Nosso SUS, do povo, não das elites ou de seus representantes ideológicos. Nesse item, finalizando com Gramsci, diríamos que almejamos formar o Intelectual Orgânico: sábio, na forma do Homem Médio em sua Vida Comum, preenchido de condição humanitária e transformador da realidade que nos abateu feito genocídio.

E o que é Ciência? Diria Bourdieu: é a luta armada.

Cada um(a) entende como quer, mas entendemos como luta armada de sonhos e de esperanças, de fé na coisa pública, em luta acesa e armada contra a desilusão, o atavismo, a ignorância programada e replicada, o obscurantismo negador do próprio Renascimento: essa areia movediça da anti-ciência.

Entendemos que é uma luta armada em defesa da Constituição Federal de 1988, em defesa da democracia, da República, do Estado de Direito. Lutamos pela sanidade, pela saúde pública das próprias instituições, pela dignidade humana e pela mínima capacidade cognitiva aplicada aos negócios públicos.

Sumariamente, entendemos como luta armada pelo “Direito a ter direitos” e legitimamente municiada contra toda e qualquer forma de obstrução prévia do conhecimento crítico, libertário, inclusivo e emancipador. Nos caberia, com folgas, a Educação após Auschwitz – de Adorno.

E, aqui, todos sabem que se fala da luta antifascista que orbita O Labirinto do Fauno, por onde anda o Alienista, os “bestializados” que ainda hoje promovem uma Revolta da Vacina, em 2021, e os macunaímas que teimam em negar o Abaporu – repleto de Vidas Secas.

A ninguém é atribuída a obrigação de concordar com tudo, mas a ninguém é dado o direito de alegar ignorância em face das restrições impostas a um suposto “direito de ir e vir”, pois há que se ficar, permanecer e respeitar o isolamento social.

A ninguém é dado o direito de negar a Ciência, como se recebesse uma carta em branco que viesse a se alimentar e servir-se como remédio antijurídico do próprio direito à vida e que, assim, ainda abastecesse essa gigantesca farmácia que pulula no WhatsApp – e seus fármacos envenenados de mentiras e de ódio social, já derrotando largamente o
famoso Dr. Google.

O capitalismo brasileiro, redescobrindo a cultura do “homem das cavernas”, investe contra Prometeu – o Patrono do Conhecimento e leva a crer que a morte é mais lucrativa do que a vida; por isso, investe-se em armas e não em vacinas. Por isso também não há “impedimento”, porque há muito mercado para a morte programada, planejada.
Essa é a experiência renitente do “nosso” Necrofascismo.

O Brasil, em 2021, vive (sobrevive) entre Pinochet e Thatcher – sempre soubemos combinar, perfeitamente, capitalismo e escravidão. Por isso, também, levaremos algum tempo para superar a negação da inteligência ou, ao inverso da negação, para a afirmação da cognição saudável.

Antigamente, ainda como modelo ideal, tratávamos de uma “inteligência política”; porém, no país atual, efetivamente, combater as iniquidades, e afirmar a inteligência meridiana, não é uma missão para amadores. Portanto, nosso convite sempre será para que se avalie Ciência, Tecnologia e Sociedade em total consideração à
democracia, aos direitos fundamentais, à dignidade humana.

A vida, se há saúde e inteligência na condução das instituições públicas, em contraste, exige a superação da Idiocracia que se mantém com as provocações do Democida instalado no poder. Por isso, não quero os Versos Tristes, de Neruda. Nós queremos saúde pública.

Referências


ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1995.
DEL TORO, Guillermo & FUNKE, Cornelia. O Labirinto do Fauno. Rio de Janeiro : Intrínseca, 2019.
GRACILIANO RAMOS. Vidas Secas. 91ª ed. Rio De Janeiro : Record, 2003.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). V. 2. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

(ps: Abertura da Aula Magna, como coordenador do PPGCTS/UFSCar, em 12.04.2021