CIÊNCIA DA CF88: História, teleologia, epistemologia

Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Member

A CF88 não nos prega nenhuma forma de teologia, não há direito divino, mas somente nos apregoa a teleologia e uma epistemologia política bem específica – consoante com a prevalência de uma leitura política do próprio Direito – e, por essas e outras razões, insistimos na urgência de realizarmos a ciência da Carta Política de 1988.
Afirmamos a urgência em observarmos a CF88 sob uma perspectiva histórica, em que se faça uma análise prospectiva observando-se a conquista histórica. Desse modo, essa ciência da CF88 já ganharia mais um contorno em termos de metodologia: análise histórica como substrato do método prospectivo. Sobretudo, para que se revelem para
nós tanto a ontologia quanto a teleologia. O resultado demonstraria uma epistemologia política para além da nomologia e da “letra fria da lei”. Essa mesma Letra Constitucional que se teima, à direita e à esquerda, subverter: ou em revisionismo ou em criticismo a-histórico.


A Ideologia Constitucional, no mal sentido, apostou na possibilidade democrática que haveria de surgir na alma brasilis – a mesma que é herdeira do escravismo, da miscigenação forçada pelo abuso e pelo estupro coletivo, e que se projetou historicamente como “cordialidade”, troca de favores, negacionismo histórico e com amplo predomínio
do Alienista de Machado de Assis (1994).


No bom sentido, se assim podemos dizer, a Ideologia Constitucional reforçou onde pôde – no contexto do realismo político de sua época – os meios, instrumentos e insumos da inclusão, emancipação, equiparação e participação. Pois bem, é esse mesmo núcleo duro da CF88 que a cegueira ideológica, do criticismo a-histórico, não consegue
visualizar e por isso insiste em negar a conquista histórica. A boa Ideologia Constitucional, como se vê, é abatida diariamente, à direita e à esquerda, quando se impõe o idealismo, o abstracionismo, o redentorismo dos apologetas
do futuro perfeito, mas sem capacidade de se ver a luta histórica pelo Direito.

No fundo, trata-se de um criticismo infanto-juvenil: à direita, segue-se a sanha do barbarismo social; à esquerda, mesmo sob a imposição do Fascismo, corrói-se a CF88 com um esquerdismo que não passa de um suposto comunitarismo em estágio de perfeição alucinada.De todo modo, o que a Análise Constitucional não pode abdicar é da referência conceitual, da teoria com força de massa crítica. Isso também é ponto pacífico. Entretanto, isto só será possível se entendermos, como cientistas, que nenhuma análise será responsável desligando-se da conquista histórica. Em essência, sem história, a práxis não se confirma como social, encaminhando-se em raso espontaneísmo ou voluntarismo atônito, perturbado pelas próprias ideias (ideais longínquos) ou pelo nevoeiro dos fatos.


Ignorantes da história, ainda que movidos por interesses diferentes, direita e esquerda (a parte confusa) são atraídos pela mesma encruzilhada: o empiriocriticismo. Encaminhando-se pouco além do empirismo da primeira impressão. Isto é, sem ontologia, a crítica não passa de um tipo de oncologia política. Por fim, vale dizer que não existe Letramento Constitucional sem conhecimento histórico. Essa ideologia do jurista, mesmo que supervisionada pela boa-fé, não tem uma super visão, pois só faz rechear o Inferno com boas almas. Definitivamente, não é porque
vivemos num pântano jurídico que devemos mergulhar na areia movediça, puxando os cabelos, como o Barão de Münchhausen (LÖWY, 1994).
Conquista histórica: do passado ao presente Para termos uma frase definindo o que é conquista histórica, sem muitas
discussões historicistas, pensemos que significa algo como ter, fazer, participar – ainda que em reconhecimento – das proposições mais significativas, dos avanços, ou seja, das conquistas obtidas historicamente. Portanto, se falamos em conquista – a exemplo de se conquistar o poder –, por óbvio, nada virá de presente.
Retomemos o exemplo prosaico de que a CF88 superou décadas de regime militar e do vigor do direito de exceção – o AI-5 é apenas um exemplo, talvez o pior, se a própria Lei de Segurança Nacional (em vigor, não-revogada) não for tida como de pior gravame.
Neste sentido, dizemos que a conquista histórica da CF88 é o que nos permite analisar a democracia e a própria Construção Constitucional emancipatória. Aqui o mais sintomático curso da Constituição Cidadã nos assegura a liberdade de expressão e combate o anonimato – o direito não pode, nunca, permitir ameaça ou associação
criminosa contra a CF88, por exemplo, e não precisa ser um movimento armado (art. 5º, XLIV da CF88).
Do mesmo modo, o passado violador de direitos fundamentais – da dignidade humana – não encontra guarida na CF88. Salvo a péssima redação do art. 142 – e outras reminiscências –, o passado militar não está escondido, embutido na CF88. Não é um passado vibrante, é póstumo. As conquistas foram efetivadas no passado-presente de 1988; um passado que é presente porque a CF88 e seus valores não caducaram, juridicamente. Como estão atuantes, essas conquistas históricas – notadamente do Princípio Civilizatório – apontam para a Teleologia Constitucional. Aqui, novamente, se
insere a conquista histórica como Legado Constitucional, uma vez que sem história não
há futuro. Em uma frase, queremos reafirmar que, quem não observa na luta política pelo
Direito – o miolo da luta de classes – as principais conquistas históricas, todos e todas
essas, estão fadados(as) a viver no obscurantismo do mesmo passado que sempre foi seu
cárcere.
Nesse ponto cabe a questão central colocada ao cientista, como temos nesta
recuperação que Bachelard (1985) faz do enigma de Willian James:
“A ciência é um produto do espírito humano, produto conforme às leis
de nosso pensamento e adaptado ao mundo exterior. Ela oferece, pois,
dois aspectos, um subjetivo, o outro objetivo, ambos igualmente
necessários, visto que nos é tão impossível mudar o que quer que seja
nas leis de nosso espírito como nas do Mundo (p. 11).”
Então, diante da conquista histórica reafirmada na luta política pelo Direito, no
meio da luta de classes, nós nos posicionamos como realistas ou racionalistas? Como
juristas e cidadão intérpretes da CF88 também somos, além disso, idealistas ou
empiristas? Não temos ainda interpretações criacionistas, reducionistas? Não contamos
ainda com o espontaneísmo e o ativismo – bons de aparência?
Alguns tratam de mudancismo, mas nem sempre analisam o que é Mutação
Constitucional – especialmente quando o realismo político é caótico. Enquanto outros,
neste mesmo caos institucional, anunciam Mutação, mas entregam verdadeira
Transmutação Constitucional. Afinal, com quantas ciências se faz o Direito – ou com
nenhuma?
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1985
LÖWY, MICHAEL. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen:
marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 5ª ed. São Paulo :
Cortez, 1994.
MACHADO DE ASSIS. A sereníssima República e outros contos. São Paulo : FTD, 1994

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