Crônica “anunciada” da Constituição

Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Member

Estranha-me a ideia de uma crônica da CF88.

Até porque as crônicas são surreais, pelo gênero literário – quem lê nunca sabe ao certo diferenciar o real da fantasia. É o oposto, digamos assim, das lendas imaginárias e dos artigos ou matérias. A crônica é um gênero que não se amarra a um estilo. A crônica é a carta aberta dos ciganos e sagitarianos? Vejamos.

Faz 20 anos que tento fazer uma crônica e confesso que a valentia vale mais do que o resultado. Para que você tenha uma ideia, já escrevi sobre a falta de ideias ou de assuntos. Até isso você aprende, quando tem que fazer um texto semanal por mais de dez anos. Já adianto que é insuperável a sensação de ver seu nome impresso; mesmo que as
pessoas embrulhem peixe logo depois de ter em mãos o jornal do dia.

Também é legal dizer, a quem ainda esteja lendo, que a crônica tem um aspecto muito bacana e acho que é isso que seduz: a criatividade deve superar os métodos, a precisão dos fatos e os anúncios técnicos. A origem dessa aqui, por exemplo, deu-se no chuveiro. A maioria esmagadora das minhas ideias (boas e más) vem da água. Talvez
como se fosse a água boa e a água suja do banho. Quem sabe.

Chamei de “anunciada” porque, sinto comigo, anunciei-me esse dever (ou vontade) de fazer crônica da CF88 umas mil vezes. Nada como essas coisas de “crônica de uma morte anunciada”. A história e as crônicas já provaram que isso não cola.

Hoje, o bebê, que não desceu pelo ralo com a água suja do banho, sussurrou em meus ouvidos o que gostaria que eu contasse. Como falei, não é tarefa fácil. Aliás, é bem estranho pensar que esse bebê seja uma jovem senhora: balzaquiana. A CF88 tem 33 anos. Comparemos: o Brasil tem 521 anos e eu tenho 56.
Isso me lembrou de mais três coisas. Lembro-me que Carlos Ayres Britto, ministro aposentado do STF, tem um livreto romanceado da CF88: Teoria da Constituição (Rio de Janeiro : Forense, 2003). Deve ser sua crônica anunciada ou poema da CF88:

“Ela consubstancia um tipo tão articulado de unidade que faz lembrar a composição e o sentido de um poema…E tudo isto quer dizer que o poema, como a Constituição, fala pelas palavras nele grifadas e ainda fala por palavras que nele não foram grafadas. O verbal a conviver com o não-verbal, a serviço da mesma causa, cumprindo o não-verbal o papel do silêncio-eloquente; ou seja, o silêncio que já não traduz a intenção do nada-dizer, mas que se faz silêncio mesmo para poder melhor dizer (p. 99-100).

Lembrei-me também das recomendações de alguns cronistas geniais que lia muito, diariamente. O maior do gênero sempre foi, sempre será Rubem Braga. Bastavalhe lembrar das mãos da mulher amada para reviver o amor inteiro, mais intenso.
Outro que estudei como estilo e métrica, não em conteúdo, foi Paulo Francis: cada
linha uma ideia, sem ser taquigráfico. Cada conjunto de ideias uma narrativa própria, em
quatro ou cinco linhas. Aí quebra.

Otto Lara Resende foi insuperável em seu “Bom dia para nascer”. Vinícius de Moraes tem livros e coletâneas – sim, também escreveu crônicas e canções que são crônicas cariocas.

Nelson Rodrigues é um explicador do Brasil: a classe média escravista e pervertida. Cony imaginava ser um Borges (igualmente cronista, articulista) e eu sempre preferi Gabriel Garcia Márquez: jornalista e cronista a contar a América Latina golpista.

Tenho ainda na memória as crônicas de Graciliano Ramos e de Machado de Assis. Clóvis Rossi fazia artigos romanceados – não era exatamente jornalismo de clima e nem literário. Mas, li muito, aprendi pra vida toda.

A terceira história é pessoal.

Como já falei demais, vou guardar essa para a próxima. Assim teremos mais assuntos para nossas conversas. Tudo bem pra você? Obrigado por ter lido até aqui, esta minha singela defesa da CF88.

A CF88 é o meu encantamento pela democracia e pelos direitos. Só que não é “o avesso do direito”, de Camus.

A CF88 é uma ideia que não termina, uma crônica anunciada para ser cumprida, um poema de amor pela liberdade e justiça. É a CF88 que me permite escrever para você.

Então, sendo assim, saúde e paz – como diz o amigo Cidoval.

E paz e ciência, nos dois sentidos da composição dos meus desejos para ti

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