Uso econômico da exceção?

Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Member

Como se sabe, a ditadura civil-militar de 1964 foi um tipo de regime de exceção, um protótipo clássico de quartelada. Também, como se sabe, duas peças jurídicas de força excepcional foram postadas como procedimento legislativo: o AI-5 e a Lei de Segurança Nacional.

Essa LSN, de poderes excepcionais, estritamente vinculada ao esforço da Razão de Estado, é de inegável capacidade de exceção – até hoje. Com o advento da CF88, a LSN perdurou, o que em si se configura como arrasto da exceção aos dias atuais. Fato, evidentemente, incabível; e, ainda, se soma à conhecida Lei Antiterror (2016). O que poderia haver de mais negativo à CF88, neste curso? Além de tudo, o Executivo ainda interpõe junto ao STF uma suposta “utilização econômica da exceção1”.

Se já não fosse suficiente para se demonstrar os mais assustadores ataques à CF88à direita e à esquerda – vemos se avolumarem as declarações oficiais ou de seus emissários em tom (e desenhos bem delineados: “WP”) de apologia ao crime ou simplesmente conclamando neonazistas ao poder. Se lembrarmos bem da história de 2016 quando se reverenciou Ustra (coronel torturador) no Congresso Nacional –, a conclusão óbvia é de que: o ocorrido atualmente não é novidade. Nessa sessão, que culminou e chancelou o golpe de 2016 (mesmo com aval contrário da CGU), a subversão à democracia e ao Estado de Direito, ali, já estava pronta – com inegável defesa do desmantelamento do Processo Civilizatório.

As digitais de 2018-2021 estão em 2016 – as de 2016 remontam a 2013 – e, por fim, tudo pode ter sido embalado desde o Mensalão (2005) e sua coirmã Lava Jato (2014), deserdada pelo STF em 2021. Certamente, nenhum roteiro de ficção espantosa se equipara a isso: é digital demais, mesmo para um gênio como Asimov (2004) e seu Eu Robô. Esse é o tal “Mecanismo” que vem nos abatendo e, obviamente, não cabe na ideologia infanto-juvenil postada via Netflix.

O fogo na Amazônia e no Pantanal, “com a boiada passando”, a estapafúrdia logística dos aparelhos respiradores que não se encontram no Mapa, a inexistência de vacinas, os factoides de arrependimento do famoso mercado, a implosão da economia, os mais severos ataques aos trabalhadores e aos servidores públicos, bem como a incursão antieconômica dentro da maior empresa estatal brasileira (Petrobrás), tudo isso e mais um pouco, a exemplo do colapso dos hospitais públicos e privados, no Brasil todo, é mera consequência.

Não há coincidência alguma, nem espanto, nem Judas enganado, só há semelhanças com o Necrofascismo: um projeto político programado para a morte globalizada do povo. Algo mais amplo em táticas e estratégias do que a Ciência Política denominava de Democídio: extermínio de um povo.

O vocábulo Democídio resulta de uma combinação do sufixo latim cidium, derivado de caedére, “matar” e do prefixo grego demo, povo. Ao que se segue, pela lógica, à “morte por ação direta de um governo”.

Também se pode avaliar o democídio como um dos tipos de politicídio, mas não como sinônimo, visto que este último é mais amplo e reúne outras modalidades de abatimento político. Ainda mais porque, no politicídio, o uso da expressão é generalista e pode incluir sentidos bastante prosaicos, como “assassinato de uma carreira política”. […] Portanto, no caso de democídio, as matanças políticas são manifestamente assassinatos deliberados, planejados e realizados a partir de determinadas motivações político-ideológicas – ou seja, é evidente que o intuito de cometer a eliminação física é inerente ao ato político de extermínio de uma parcela do povo (MARTINEZ, 2014, online).

Em outro exemplo, a seletividade da Bomba de Nêutrons, e que não faz mal ao capital, porque não demole casas e equipamentos difíceis de serem repostos, poderia ser um guia a esse projeto atual do Fascismo Nacional.

Altamente demolidor e exímio na letalidade de negros, pobres, indígenas, idosos e de todos os que se atrevem a pensar um país livre do comando miliciano, o Necrofascismo, como se diz, será julgado pela história e pelo povo. Pelos sobreviventes ou náufragos que escaparam aos dissabores de um coronel ou capitão qualquer, esquecido e esclerosado, como diria Gabriel Garcia Márquez (2001).

No país da piada pronta, típica de Macunaíma e de João Grilo (LIMA, 2002), seguindo-se o general De Gaulle (“Esse país não é sério”), a “normalização da morbidez”, anunciando mais de 500 mil mortes – sem surtir efeito de indignação aos poderes e instituições, e nem junto ao povo –, esse genocídio, ainda nos revela que faltará a famosa cloroquina para os casos crônicos de malária. É difícil olhar para o poço de nossa cultura, mas é o que temos para hoje – quiçá, para mais 20 anos de espetáculo circense na política.

A esperança, nossa esperança, no entanto, estaria no sorriso debochado, nos lábios irônicos e cínicos de quem se viu atropelado pelo mesmo cinismo que outrora apoiou, como nos diz Octávio Ianni (1983):

Toda ditadura começa a ser destruída no momento em que o povo, operário, camponês, mineiro, empregado, funcionário, faz uma piada sobre o ditador […] A piada é uma fantasia popular […] O humor gera o riso e solapa a pretensa seriedade e eternidade da mais poderosa tirania […] O criado negro representa o Supremo com a mesma autenticidade, a ponto de este se reconhecer na paródia. Há uma carnavalização do tirano e da tirania […] A vaca passeia nos salões do palácio e pasta as suntuosas cortinas e os solenes tapetes (Ianni, 1983, p. 100).

Isso é o que planejamos ou, ao menos, esperamos ver em breve, como seguidores de uma metáfora que leve o jacaré de volta ao Pantanal – e assim retire esses animais da cidade, onde, de fato, são extremamente perigosos. O que, por fim, relata uma espécie de justiça revolucionária que retroalimenta o meio ambiente saudável, por natureza, e também politicamente.

Bibliografia

ASIMOV, Isaac. O homem bicentenário. Porto Alegre : L&PM, 1997.
             Eu Robô. Ediouro, 2004.
IANNI, Octavio. Revolução e cultura. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1983.
           Ensaios de sociologia da cultura. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1991.
           A ideia de Brasil moderno. 2ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1994.
LIMA, João Ferreira de. Proezas de João Grilo. Fortaleza-CE : Academia Brasileira de Cordel : Ban Gráfica, 2002.
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Ninguém escreve ao Coronel. 18ª Ed. Rio de Janeiro : Record, 2001.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Democídio. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3890, 24 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26748. Acesso em: 4 abril 2021.

Constitutional Carnivalization: Government disregards and de-bureaucratizes the Constitution

Amid the 2019 carnival, the federal government had reduced the participation of civil society in the deliberative spheres of power, and thus, entered (through the back door) in a classic phenomenon of Political Anthropology: the Carnivalization of Politics (DAMATTA, 1983) or, as we call it here, the cannibalization of CF88.

In summary, the various executive ministries installed in 2018 emptied councils, commissions, committees, and other forms of collegiate management. In practice, with immediate effect, it means that the Public Power once again failed (and has been destroying) the Federal Constitution of 1988 and, thus, continues to act against the law – since 2019, it is worth mentioning. Certainly, what is preserved by the Constitution is achieved, concerning the restriction to the removal of civil society from public affairs. The Political Charter says the opposite because it instigates inclusion, participation, social control, political pluralism, and emancipation.

The Constitution guarantees as a duty or “public obligation to do” the deepening of the forms of participatory democracy and management through popular representation, notoriously, as the power of the decision of the main social policies. The data speaks for itself: there were about 40 Councils, some consultative and others normative, like the National Environment Council. Although the majority of councils were created in the 1990s – shortly after the promulgation of the Constitution – the Health Council, for example, dates from 1930. The same public health that, by direct and premeditated action of Necrofascism, in the way of facing the 2020 pandemic, received the seal of “devastating” by the UN (United Nations) – a fact, undoubtedly, that is directed as a genocidal deliberation and that reminds the Füher in the last days of the Reich – when condemning the people German to total extermination, for being “weak”.

Following the same political symptom, in 2020, we were labeled (and condemned) as an “environmental outcast”. With these nicknames, what will we say to future generations – starting from the present tax – when we have to say that the agent was urged to the International Criminal Court, for proclaiming himself as the instigator of genocide?

The episode of the National Committee for the Prevention and Combat of Torture is even more symptomatic: its members were elected, but they did not even take office. Prison monitoring and delivery of reports on psychiatric hospitals have already been affected, as well as the definition of public policies aimed at the elderly, disabled, and indigenous people.

The National Council for Indigenous Policy and the Amnesty Committee were not even listed by the government. The National Council for Solidarity Economy has been wiped out, thinner, reduced to tripartite representation, in which government, workers, and employers now have the same number of members – as if the action of capital on labor incurred isonomy of forces.

Another one that suffers restrictions is the National Council of Workers in Family Agriculture, observing the ineffectiveness of Condraf (National Council for Sustainable Rural Development) and Cnapo (National Commission for Agroecology and Organic Production). The National Council for Food and Nutritional Security (Consea) was abolished.

Therefore, there is a serious emptying of the participation channels of the people and their professional and technical representations and, as a result, it is easily concluded that the more averse to the democratic norm, the more indifferent, distant, and anti-popular, is the Public Power. Another assessment, as clear as possible, is that, possibly, political measures and actions of the displeasure of the people are more easily taken – by removing the “obstacle” of participation and social control.

It should be noted, specifically, the areas where the dismantled councils were most affected, are, notoriously, related to the Ministries of Citizenship, Agriculture, Human Rights, Women, and Family. Many other conjectures can be made and, although lessons from factual data are relevant, we will bring just a few examples: in agriculture, members of civil society may / should be against the use of pesticides, exactly those prohibited by the main health regulatory agencies in Brazil and internationally.

Whoever has the least constitutional intelligence (socially and morally adept at the Civilizing Process) knows that, when an international inquiry is received at the Human Rights Council (UN), ethical and human defeat already accompanies the proposition and, therefore, not the condemnation – it is also known that “absolution” does not bring redemption from guilt or deceit. It is worth noting that the same accusation applies to “systemic racism” that makes Racialfascism rules; in addition to the fact that we kill prisoners and hunger victims.

It has become routine to observe the moral cancellations coming from international institutions, on several subjects, including “ordinances on abortion” (typical janitorial or porter rules) that hurt any republican basis or principle. There are also serious condemnations of human rights violators, in the name of some unbalanced faith, and severely punished by the Supreme Court: note that in this case there is medieval torture, in the name of some alleged nefarious deity.

When ministries and institutions are charged by the UN (Committee for the Elimination of Discrimination against Women), notably, on the urgency of complying with the legality of public acts and declarations, it is because National Fascism has dug a very deep civilizing gap. Another example of this is the accusation in the multilateral organization that the Government does not recognize – and, therefore, does not act against – structural racism.

This is just a residual summary of the current situation of Necrofascism in the country, invoking Nero to watch over the Amazon and the Pantanal – besides the fact that, within the Empire, even women of power are encouraged, religiously, to be submissive to macho interests.

The worst, however, is to watch the country internationally deny human rights. Internally, ministers of state action “secretly” to violate the law and court decisions.

In this sense, the probability is much greater that hunger is a chronic sensation among women, blacks, and browns – that is, the vast majority of the population will be able to know the state of misery, chronic hunger, due to the neoliberalism applied in the course of the pandemic. . We can and must consider and accentuate many of the historical problems of the National State – from the pristine eras of the formation of the Nation-State – but are we a nation? Isn’t the Patriarchal State the result of Casa Grande and the denial of citizenship? Isn’t bachelorhood still a disguise to racism and segregating elitism, founder of public places like Paraisópolis and Higienópolis? Whose paradise, who’s cleaning – and not what …?

Hasn’t political parochialism ever wiped out any project for professionalizing the state? Doesn’t all this stem from the atavistic colonial combination between Capitalism and slave labor? All of this, now, have no effects exacerbated by the sociopathy of financial capital and incorporated by genocidal state practices?

Finally, it is worth mentioning that we are dealing here – evidently – with some intricacies of the state structures of National Fascism, especially in 2020. There is no doubt that public institutions are articulated around a fascist State project.

More on

BRANCO, Guilherme Castelo (Org.). Terrorismo de Estado. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

CALDAS, Álvaro. Um abominável legado de tortura. Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno Aliás, p. J5, 02 set. 2007.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1983.

CIÊNCIA DA CF88: História, teleologia, epistemologia

Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Member

A CF88 não nos prega nenhuma forma de teologia, não há direito divino, mas somente nos apregoa a teleologia e uma epistemologia política bem específica – consoante com a prevalência de uma leitura política do próprio Direito – e, por essas e outras razões, insistimos na urgência de realizarmos a ciência da Carta Política de 1988.
Afirmamos a urgência em observarmos a CF88 sob uma perspectiva histórica, em que se faça uma análise prospectiva observando-se a conquista histórica. Desse modo, essa ciência da CF88 já ganharia mais um contorno em termos de metodologia: análise histórica como substrato do método prospectivo. Sobretudo, para que se revelem para
nós tanto a ontologia quanto a teleologia. O resultado demonstraria uma epistemologia política para além da nomologia e da “letra fria da lei”. Essa mesma Letra Constitucional que se teima, à direita e à esquerda, subverter: ou em revisionismo ou em criticismo a-histórico.


A Ideologia Constitucional, no mal sentido, apostou na possibilidade democrática que haveria de surgir na alma brasilis – a mesma que é herdeira do escravismo, da miscigenação forçada pelo abuso e pelo estupro coletivo, e que se projetou historicamente como “cordialidade”, troca de favores, negacionismo histórico e com amplo predomínio
do Alienista de Machado de Assis (1994).


No bom sentido, se assim podemos dizer, a Ideologia Constitucional reforçou onde pôde – no contexto do realismo político de sua época – os meios, instrumentos e insumos da inclusão, emancipação, equiparação e participação. Pois bem, é esse mesmo núcleo duro da CF88 que a cegueira ideológica, do criticismo a-histórico, não consegue
visualizar e por isso insiste em negar a conquista histórica. A boa Ideologia Constitucional, como se vê, é abatida diariamente, à direita e à esquerda, quando se impõe o idealismo, o abstracionismo, o redentorismo dos apologetas
do futuro perfeito, mas sem capacidade de se ver a luta histórica pelo Direito.

No fundo, trata-se de um criticismo infanto-juvenil: à direita, segue-se a sanha do barbarismo social; à esquerda, mesmo sob a imposição do Fascismo, corrói-se a CF88 com um esquerdismo que não passa de um suposto comunitarismo em estágio de perfeição alucinada.De todo modo, o que a Análise Constitucional não pode abdicar é da referência conceitual, da teoria com força de massa crítica. Isso também é ponto pacífico. Entretanto, isto só será possível se entendermos, como cientistas, que nenhuma análise será responsável desligando-se da conquista histórica. Em essência, sem história, a práxis não se confirma como social, encaminhando-se em raso espontaneísmo ou voluntarismo atônito, perturbado pelas próprias ideias (ideais longínquos) ou pelo nevoeiro dos fatos.


Ignorantes da história, ainda que movidos por interesses diferentes, direita e esquerda (a parte confusa) são atraídos pela mesma encruzilhada: o empiriocriticismo. Encaminhando-se pouco além do empirismo da primeira impressão. Isto é, sem ontologia, a crítica não passa de um tipo de oncologia política. Por fim, vale dizer que não existe Letramento Constitucional sem conhecimento histórico. Essa ideologia do jurista, mesmo que supervisionada pela boa-fé, não tem uma super visão, pois só faz rechear o Inferno com boas almas. Definitivamente, não é porque
vivemos num pântano jurídico que devemos mergulhar na areia movediça, puxando os cabelos, como o Barão de Münchhausen (LÖWY, 1994).
Conquista histórica: do passado ao presente Para termos uma frase definindo o que é conquista histórica, sem muitas
discussões historicistas, pensemos que significa algo como ter, fazer, participar – ainda que em reconhecimento – das proposições mais significativas, dos avanços, ou seja, das conquistas obtidas historicamente. Portanto, se falamos em conquista – a exemplo de se conquistar o poder –, por óbvio, nada virá de presente.
Retomemos o exemplo prosaico de que a CF88 superou décadas de regime militar e do vigor do direito de exceção – o AI-5 é apenas um exemplo, talvez o pior, se a própria Lei de Segurança Nacional (em vigor, não-revogada) não for tida como de pior gravame.
Neste sentido, dizemos que a conquista histórica da CF88 é o que nos permite analisar a democracia e a própria Construção Constitucional emancipatória. Aqui o mais sintomático curso da Constituição Cidadã nos assegura a liberdade de expressão e combate o anonimato – o direito não pode, nunca, permitir ameaça ou associação
criminosa contra a CF88, por exemplo, e não precisa ser um movimento armado (art. 5º, XLIV da CF88).
Do mesmo modo, o passado violador de direitos fundamentais – da dignidade humana – não encontra guarida na CF88. Salvo a péssima redação do art. 142 – e outras reminiscências –, o passado militar não está escondido, embutido na CF88. Não é um passado vibrante, é póstumo. As conquistas foram efetivadas no passado-presente de 1988; um passado que é presente porque a CF88 e seus valores não caducaram, juridicamente. Como estão atuantes, essas conquistas históricas – notadamente do Princípio Civilizatório – apontam para a Teleologia Constitucional. Aqui, novamente, se
insere a conquista histórica como Legado Constitucional, uma vez que sem história não
há futuro. Em uma frase, queremos reafirmar que, quem não observa na luta política pelo
Direito – o miolo da luta de classes – as principais conquistas históricas, todos e todas
essas, estão fadados(as) a viver no obscurantismo do mesmo passado que sempre foi seu
cárcere.
Nesse ponto cabe a questão central colocada ao cientista, como temos nesta
recuperação que Bachelard (1985) faz do enigma de Willian James:
“A ciência é um produto do espírito humano, produto conforme às leis
de nosso pensamento e adaptado ao mundo exterior. Ela oferece, pois,
dois aspectos, um subjetivo, o outro objetivo, ambos igualmente
necessários, visto que nos é tão impossível mudar o que quer que seja
nas leis de nosso espírito como nas do Mundo (p. 11).”
Então, diante da conquista histórica reafirmada na luta política pelo Direito, no
meio da luta de classes, nós nos posicionamos como realistas ou racionalistas? Como
juristas e cidadão intérpretes da CF88 também somos, além disso, idealistas ou
empiristas? Não temos ainda interpretações criacionistas, reducionistas? Não contamos
ainda com o espontaneísmo e o ativismo – bons de aparência?
Alguns tratam de mudancismo, mas nem sempre analisam o que é Mutação
Constitucional – especialmente quando o realismo político é caótico. Enquanto outros,
neste mesmo caos institucional, anunciam Mutação, mas entregam verdadeira
Transmutação Constitucional. Afinal, com quantas ciências se faz o Direito – ou com
nenhuma?
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1985
LÖWY, MICHAEL. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen:
marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 5ª ed. São Paulo :
Cortez, 1994.
MACHADO DE ASSIS. A sereníssima República e outros contos. São Paulo : FTD, 1994

DO SENTIDO DA CARTA POLÍTICA

Vinício Carrilho Martinez (Dr)
Professor Associado da UFSCar
Head of BRaS Research Group –
Constitutional Studies and BRaS Academic Committee Membe

Ser ou não ser? Essa dubiedade, incerteza, alienação, é parte da vida social da Humanidade: é Fascismo ou não? É ditadura ou não? Trata-se de graves ou de gravíssimas violações dos direitos fundamentais, com negação da vida social e da dignidade (ou não)?

Sob a Política, a Polis, o “fazer-se política”, porém, a lei deve ser assertiva para minimizar essa exposição. Por exemplo, a CF88, enquanto mapa teleológico, deve ser um guia, uma bússola moral, para que o cipoal seja retirado da frente das políticas públicas.

            A prevalecer a CF88, o Poder Público deve estar em equilíbrio institucional, mas não em pódio centrista, pendendo ou podendo cair do muro em qualquer dos lados que arregimente mais poder ou quedar-se sob júdice da “lei do mais forte” (MÉSZÁROS, 2015). Neste momento, em 2020, nós tendemos à barbárie fascista, com enorme constrição de direitos e de garantias fundamentais.

            Por sua vez, ao contrário disso, a CF88 é expressa a fim de que Hamlet (SHAKESPEARE, 2004) não nos coloque como o “não-ser”. Essa opção não é válida à vida humana e social. Sob o art. 225 da CF88, a Amazônia, o Pantanal e os manguezais (também os Pampas, o Cerrado, a Caatinga) devem ser prioridade – para que “sendo”, também possamos ser.

  • Como patrimônio nacional – natural, social, cultural (art. 225, § 4º, da CF88) – a preservação do meio ambiente nos inclina diretamente ao Processo Civilizatório (art. 225, caput).
  • Assim, a teleologia é esta bússola moral que nos preserva enquanto vida social, garantindo-se que o presente e o futuro das próximas gerações seja uma realidade e não uma evidência.
  • O meio efetivo, o mecanismo político-jurídico, de Segurança Constitucional ao Processo Civilizatório também está inscrito na Carta Política de 1988: trata-se da integridade do patrimônio genético e a ativação do Princípio da Diversidade (225, II).
  • Quando isto não ocorre, como diz Hamlet, é porque há algo de muito podre no Reino da Dinamarca, e mais ainda no Brasil de 2016-2020.
  • Enfim, concluindo-se parcialmente esse aspecto, pode-se dizer que precisamos expandir o direito à consciência que nos permita entender que toda Constituição tem uma unidade política; todavia, como Carta Política, na CF88 prefigura-se uma utilidade política, notadamente, para que nenhuma cidadã, nenhum cidadão, pergunte-se se é ou não.

O que fazemos ao buscar orientação para uma Ciência da CF88 não deixa de ser a aplicação de uma técnica ao próprio Texto Constitucional. Porém, tanto esta forma de abordar, inquirir, a CF88, quanto o próprio Objeto Positivo da CF88 – Princípio da Inclusão dos Direitos da Cidadania – são manifestações culturais. Não são técnicas ou ciências positivistas no sentido específico de obtenção de neutralidade ou equidistância do conhecimento. Pelo contrário, trata-se de conhecimento técnico, político-jurídico, a serviço da militância em favor dos direitos de cidadania (BORJA, 1998).

Do mesmo modo, sob o alcance do Objeto Positivo da CF88 (pluralismo, mutualismo e multiculturalismo[1]), a técnica e a ciência aplicadas à CF88 são de natureza político-jurídica, e isto quer dizer que se autorreferenciam como inclusão e manifestação cultural do Conteúdo Constitucional (BORJA, 1998). De tal sorte que, à frente do realismo político, deve-se diferenciar os direitos políticos quando se observa a análise do cientista político e do jurista – propriamente dito (BORJA, 1998).

No que se refere ao Processo Civilizatório em destaque na CF88 – desde o art. 4º, IX e 215, § 1º – já fica sobrestado também que deve-se receber auxílio, nesta inicial Ciência da CF88, da Filosofia (ou Filosofia Constitucional), da Sociologia, da Antropologia Política, da Ciência Política (BORJA, 1998), notadamente quando se referenciam os povos da floresta e as populações marginalizadas pelo próprio Estado de Direito, uma vez que, notadamente pobres e negros, só reconhecem o poder do giroflex. 

Desse modo, reforçamos as diretrizes da CF88 e o emprego de uma metodologia constitucional que devemos fixar nessa leitura da Ciência da Carta Política de 1988. Neste sentido, entendemos que a Ciência da CF88 é mais devedora das Ciências Sociais, da(s) Teoria(s) do Estado e da Filosofia Constitucional do que, propriamente, de uma nomologia positivista – ainda que seja essencial enquanto conhecimento técnico a contribuir com a Luta pelo Direito. Uma leitura apurada dos direitos fundamentais individuais e sociais revela que a CF88 é inclusiva, emancipatória, cultural e expansiva.

[1] “A Constituição enuncia também alguns direitos de solidariedade. Estes são projeções recentemente identificadas dos direitos fundamentais. Deles estão na Lei Magna o direito ao meio ambiente (art. 225) e o direito da comunicação social (art. 220). Esses direitos são difusos, na medida que não têm como titular pessoa singularizada, mas “todos” individualmente. São direitos pertencentes a uma coletividade enquanto tal” (FERREIRA FILHO, 2009, p. 310).

A Ciência da CF88 traz as marcas do Constitucionalismo Moderno – Estado de Direito Democrático de 3ª Geração (por exemplo, com a internacionalização do direito à soberania: um tipo de internacionalização da liberdade negativa) – e, no caso em tela, da Ciência Política (ou mais precisamente da Teoria Política) e da Filosofia Constitucional, da própria Ética Constitucional, da Antropologia Política (fortemente cultural) e de outros substratos e constituições – por analogia, comparação, dedução. Esta forma de metodologia angaria-se da História, sobretudo da História Constitucional, e da indução, sobremaneira quando pensamos que referências apostas aos arts. 4º, IX e 215, § 1º, são mais do que divisores de valores; antes de tudo, são indutores de padrões civilizatórios que devem guiar (constitucionalmente) a sociedade, os indivíduos e o Poder Político.

Além disso, a pergunta que devemos fazer, continuamente, refere-se às relações entre o Estado – o Poder Político, a organização por excelência –, e a sociedade: a formação social brasileira. O problema está na definição de Estado Democrático de Direito, como consta na CF88, ou se dirige a indagação/preocupação extrema com o realismo político que afronta continuamente essa mesma referência da Carta Política? O problema é constitucional, nomológico, ou ético, no sentido de que os princípios jurídicos, constitucionais – que são éticos –, acabam sucumbindo à realidade nacional permeada pelos interesses do capital especulativo, mas também recheada de pequenos poderes e de pequenos favores?

Se isto não ocorre, como se sabe, o problema não é constitucional, mas sim da condição social e do realismo político enfrentado no país, mormente, sob os ganchos do Fascismo Nacional ou Necrofascismo (MARTINEZ, 2020) ao promover a negação absoluta do Estado Ambiental (CANOTILHO, 1999) vislumbrado na CF88.

Assim, afirma-se uma abordagem da Carta Política de 1988 que repudia todo sentido autoritário, a exemplo daqueles que defendem o art. 142[2] como afirmação de um suposto “poder moderador” a dar base a uma Constituição Cesarista. Pela imposição do Princípio da Unicidade Constitucional[3] e pela interposição do Princípio do não-Retrocesso Social, esse tipo de hermenêutica é ridicularizado.

[2] “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifo nosso, in verbis).

[3] “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (in verbis).

 Ao contrário disso, a Ciência da CF88 deve perceber, ressaltar que se trata de uma Constituição Antifascista, anticesarista, e isto ainda revela muito do que seja a própria Ciência da CF88 – como Carta Política decisiva à socialização e ao humanismo. É obvio, portanto, apregoarmos que o Processo Civilizatório só se faz presente com garantias efetivas às gerações futuras (art. 225) e mediante a compreensão de que a Ciência da CF88 enfatiza o patrimônio cultural, ambiental, institucional, social.

Por outro lado, há uma relação intrínseca entre a Política, a Polis (e o realismo político), com toda Constituição, e com a CF88 não seria diferente: pelo simples fato de toda Constituição ser política, no sentido de expressar as relações de poder e de dominância predominantes em determinado contexto – especialmente quando da fluência do Poder Constituinte. Por mais técnica ou histórica que se apresente, toda Constituição institui direitos, instrui deveres, delimita o Estado e o poder; contudo, trata-se de um processo em concomitância, pois o próprio Poder Constituinte é o resultado do entrechoque de outros poderes constituídos socialmente e, deste embate, toda Constituição apresenta-se compromissória.

A CF88 é compromissória, sem que seja uma exclusividade, portanto. Da forma de governo, a estruturação do Poder Político, a relação entre direitos, deveres, garantias e liberdades, o arranjo entre os três poderes, os mecanismos de freios e contrapesos, a regularidade de eleições, o pluralismo político (ou não) e a emissão de moedas, tudo é representativo dos compromissos assumidos na ocorrência do Poder Constituinte – e depois, sob o Poder Constituinte Derivado e controlador do processo jurídico. Aliás, tudo será compromisso político, inclusive se a Constituição é outorgada ou promulgada; para este último caso, há que se observar algumas entrâncias do Princípio Democrático – e que, em tese, é a guia do Processo Civilizatório postado na Carta Política de 1988.

Referências

BORJA, Rodrigo. Enciclopedia de la Politica. (2ª ed.). México : Fondo de Cultura Económica, 1998. 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa : Edição Gradiva, 1999.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

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